A taxonomia da cannabis sempre foi um tema de intensos debates entre botânicos, geneticistas e estudiosos da planta. Desde os primeiros registros do uso da Cannabis sativa L. até os avanços da genômica moderna, a classificação da planta passou por inúmeras reformulações.
Neste artigo, vamos explorar os principais paradigmas que sustentaram a divisão da cannabis em múltiplas espécies, apresentar o entendimento taxonômico mais recente, e explicar o conceito de quimiovar — essencial para uma abordagem científica, terapêutica e comercial da planta.
A visão tradicional: múltiplas espécies de cannabis
Historicamente, a cannabis foi classificada de maneira semelhante a outras plantas botânicas, com base em características morfológicas como altura, formato das folhas, tempo de floração e distribuição geográfica. Durante séculos, três espécies principais foram amplamente reconhecidas:
Cannabis sativa: alta, com folhas finas e originária de regiões equatoriais (África, Sudeste Asiático e América do Sul).
Cannabis indica: de porte mais baixo, folhas mais largas e nativa da região do Hindu Kush (Afeganistão, Paquistão, Índia).
Cannabis ruderalis: variedade menor, resistente ao frio, de floração automática e encontrada principalmente na Rússia e Europa Oriental.
Essas classificações morfológicas foram adotadas com base nos estudos de botânicos como Jean-Baptiste Lamarck (que propôs a Cannabis indica em 1785) e Richard Schultes, cuja obra na década de 1970 influenciou o renascimento moderno da taxonomia canábica.
A distinção entre sativa e indica tornou-se amplamente popular, inclusive no mercado recreativo, como forma de descrever os efeitos subjetivos da planta — embora isso não tenha qualquer base científica sólida.
Avanços científicos e a crítica à morfologia
Com o avanço das tecnologias genéticas e da fitoquímica, cientistas começaram a questionar a validade da divisão em espécies distintas. Estudos de análise de DNA mostraram que as diferenças genéticas entre sativa, indica e ruderalis são mínimas, e que as três formas são, na verdade, variantes fenotípicas de uma mesma espécie, a Cannabis sativa L.
Além disso, a hibridização extensiva promovida pelo ser humano — seja para fins medicinais, industriais ou recreativos — tornou praticamente impossível encontrar plantas puramente “sativa” ou “indica” no mercado atual. A maioria das cultivares comerciais são híbridos com traços combinados, reforçando a ideia de que a diferenciação clássica perdeu seu valor prático e científico.
O conceito moderno: quimiovares em vez de espécies
Diante da limitação da taxonomia baseada em morfologia e do surgimento de evidências moleculares mais robustas, o foco passou da aparência da planta para seu perfil químico — especialmente o conteúdo de canabinoides e terpenos. Surge então o conceito de quimiovar (ou quimiotipo), que se refere a variantes químicas de uma mesma espécie botânica.
A classificação por quimiovares propõe três grandes grupos:
Quimiovar tipo I (THC-dominante): com teor elevado de tetrahidrocanabinol (THC) e baixo de canabidiol (CBD). É o mais associado aos efeitos psicoativos e recreativos.
Quimiovar tipo II (Balanceado THC:CBD): apresenta proporções semelhantes de THC e CBD, sendo bastante utilizado em tratamentos terapêuticos que requerem efeito ansiolítico com menor risco de efeitos adversos.
Quimiovar tipo III (CBD-dominante): com alto teor de CBD e quase nenhum THC. Muito usado na prática clínica, especialmente para epilepsia, ansiedade e inflamações.
Além disso, já se reconhecem outros quimiovares emergentes, como os do tipo IV (CBG-dominante) e tipo V (sem canabinoides detectáveis). Essa nova taxonomia baseada em perfil químico é mais útil para aplicações terapêuticas e farmacológicas, pois permite que médicos, pacientes e pesquisadores escolham a variedade mais apropriada de acordo com os efeitos desejados.
E a Cannabis ruderalis?
Embora a Cannabis ruderalis tenha sido historicamente descrita como uma espécie separada, muitos autores hoje a consideram uma subespécie ou variação fenotípica adaptada a ambientes extremos.
Sua principal característica — a floração automática independente do fotoperíodo — tem sido amplamente utilizada no melhoramento genético de linhagens híbridas. Entretanto, geneticamente, ela continua pertencendo à espécie Cannabis sativa L., reforçando o entendimento unificado da planta.
Conclusão: uma planta, muitos perfis
O entendimento atual da taxonomia da cannabis converge para a ideia de que toda a planta pertence a uma única espécie, Cannabis sativa L., com variações morfológicas e químicas que refletem adaptações ao ambiente, intervenções humanas e processos de seleção artificial.
A abordagem por quimiovares representa um avanço significativo na forma de classificar e utilizar a cannabis, pois fornece uma base mais confiável e padronizável para o uso medicinal, científico e industrial. Em vez de perguntar “essa planta é sativa ou indica?”, o novo paradigma propõe a pergunta mais relevante: “qual é o seu perfil de canabinoides e terpenos?”
Para profissionais da saúde, produtores e consumidores, compreender a taxonomia da cannabis com base em quimiovares é fundamental para promover um uso mais seguro, eficaz e baseado em evidências.
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